sábado, 20 de outubro de 2007

A carne é fraca


A carne é fraca


Há tendências viciosas que são evidentemente inerentes ao Espírito, pois que se ligam mais ao moral do que ao físico. Outras parecem antes resultar do organismo e por isso acredita-se que acarretam menos responsabilidade: tais são as predisposições à cólera, à preguiça, à sensualidade etc.


Hoje está perfeitamente reconhecido pelos filósofos espiritualistas que os órgãos cerebrais correspondentes às diversas aptidões devem o seu desenvolvimento à actividade do Espírito. Esse desenvolvimento é, assim, um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tenha a bossa da música, mas ele tem essa bossa porque o seu espírito é músico.
Se a acção do Espírito influi no cérebro, deve igualmente influir sobre outras partes do organismo. O Espírito é assim o artífice do seu próprio corpo que ele modela, por assim dizer, apropriando-o às suas necessidades e à manifestação das suas tendências. Assim sendo, a perfeição corporal das raças adiantadas não seria consequência de criações distintas, mas o resultado do trabalho do espírito que aperfeiçoa o seu instrumento na medida em que as suas faculdades se desenvolvem.


Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do Espírito devem modificar as funções sanguíneas, dando-lhes maior ou menor actividade, bem como provocar secreções mais ou menos abundantes da bílis ou de outros fluidos. É assim, por exemplo, que o glutão sente a boca encher-se de água ao ver comidas apetitosas. Não é a comida em si que pode excitar os órgãos do gosto, desde que não há nenhum contacto. É pois o Espírito, cuja sensualidade foi despertada, que age pelo pensamento sobre esses órgãos, enquanto para outra pessoa a visão dessa comida não produz nenhum efeito. (25)


É ainda por essa mesma razão que uma pessoa sensível verte lágrimas com facilidade. Não é a existência de lágrimas em abundância que dá sensibilidade ao Espírito, mas é a sensibilidade do Espírito que provoca a secreção abundante de lágrimas. Sob a influência da sensibilidade espiritual o organismo apropriou-se a essa disposição natural do Espírito, como o do glutão se apropriou à disposição do seu Espírito.


Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um espírito irascível deve impulsionar um temperamento bilioso, de maneira que um homem não é colérico por ser bilioso, mas é bilioso porque o seu Espírito é colérico. Acontece o mesmo com todas as demais disposições instintivas. Um Espírito fraco e indolente dará ao seu organismo uma condição de atonia em relação ao seu carácter, enquanto um espírito activo e enérgico transmitirá ao seu sangue e aos seus nervos disposições bastante diferentes. A acção do Espírito sobre o físico é de tal maneira evidente, que vemos frequentemente graves desordens orgânicas se produzirem por efeito de violentas comoções morais. A expressão comum: a emoção pôs-lhe o sangue a ferver não é tão desprovida de senso como se poderia pensar. Ora, o que poderia agitar o sangue se não o Espírito por suas disposições morais? (26)


(25) As famosas experiências de Pavlov com a salivação dos cães demonstraram, no campo da psicologia fisiológica, materialista, a verdade desta afirmação de Kardec. Os reflexos condicionados não devem o seu condicionamento à acção dos alimentos sobre os órgãos gustativos, mas ao conhecimento mental do animal aos sinais da campainha que anunciam o alimento. No homem, esse processo é mais refinado. (N. de T.)


(26) A Medicina Psicossomática, a Psicoterapeutica em geral, e actualmente a Parapsicologia vieram confirmar cientificamente, em nossos dias, através de pesquisas e experiências, a verdade desse princípio. (N. do T.)


Pode-se admitir que o temperamento é, pelo menos em parte, determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte porque há casos em que o físico influi evidentemente sobre o moral. É quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do Espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários que influem na constituição, um mal-estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode então ser afectado nas suas manifestações pelo estado patológico, sem que a sua natureza própria seja por isso modificada.


Desculpar-se dos seus defeitos com a fraqueza da carne é, pois, lançar mão de um sofisma para escapar à responsabilidade. A carne só é fraca quando o Espírito é fraco, o que inverte a questão e deixa ao Espírito a responsabilidade de todos os seus actos. A carne, que não tem pensamento nem vontade, jamais prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e dotado de vontade. É o Espírito que dá à carne as qualidades correspondentes aos seus instintos, como um artista imprime na sua obra material o selo do seu génio. O Espírito liberto dos instintos da animalidade modela um corpo que não é mais um tirano das suas aspirações de espiritualização. É então que o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive para comer.
A responsabilidade moral dos nossos actos na vida permanece, portanto, inteiramente nossa. Mas a razão nos diz que as consequências dessa responsabilidade devem estar em relação com o desenvolvimento intelectual do Espírito. Quanto mais ele for esclarecido, menos desculpável será, porque com a inteligência e o senso moral nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. (27)


Esta lei explica os insucessos da Medicina em certos casos. Desde que o temperamento é um efeito e não causa, os esforços feitos para modificá-lo são necessariamente embaraçados pelas disposições morais do Espírito, que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a acção terapêutica. É pois sobre a causa primeira que se deve agir. Dai, se possível, coragem ao poltrão e vereis cessarem os efeitos fisiológicos do medo. (28)

Isto prova mais uma vez a necessidade, para a arte de curar, de levar em conta a acção do elemento espiritual sobre o organismo. (Ver Revista Espírita de Março de 1869).


(27) Kardec deixa de lado, nesse texto, o problema das influencias espíritas na conduta humana, para acentuar a responsabilidade individual e intransferível de cada um na prática dos seus actos. Mesmo porque as influências espíritas dependem das condições morais do homem. Assim como não podemos atribuir à carne as nossas imperfeições, também não podemos atribuí-las aos nossos inimigos ou perseguidores invisíveis. Pois eles só conseguem agir sobre nós na medida em que correspondemos aos seus estímulos. Sem a nossa aceitação, as suas sugestões e até mesmo os seus impulsos não produzem efeito. (N. do T.)


(28) Esta posição espírita coincide hoje plenamente com a posição das Ciências no campo da Medicina. Bastaria o desenvolvimento da Medicina Psicossomática para demonstrá-lo. Mas o avanço da Parapsicologia vai mais longe, abrindo caminho para a compreensão do problema da influencia espiritual e das consequências da reencarnação na vida presente. Leia-se a respeito o livro La Guerison par la pensée, de Robert Tocquet, Paris, 1970, e o livro 20 Casos Sugestivos de Reencarnação, de lan Stevenson, tradução da Editora Edicel, Brasília (DF), 1970. (N. do T.)


Referência : céu e o inferno

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