quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Uma noite esquecida ou a feiticeira Manouza


Uma noite esquecida ou a feiticeira Manouza

Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditada pelo Espírito de Frédéric Soulié.

PREFÁCIO DO EDITOR

No correr do ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se fizeram na casa do senhor B..., rua Lamartine, aí atraíram uma sociedade numerosa e escolhida. Os Espíritos que se comunicavam nesse círculo, eram mais ou menos sérios; alguns aí disseram coisas admiráveis de sabedoria, de uma profundidade notável, o que pode se julgar, pelo O Livro dos Espíritos que aí foi começado e feito em sua maior parte. Outras eram menos graves; seu humor jovial se prestava voluntariamente à distracção, mas a uma distracção de boa companhia que jamais saiu das conveniências. Desse número era Frédéric Soulié, que veio por si mesmo e sem ser convidado, mas cujas visitas inesperadas eram sempre, para a sociedade, um passatempo agradável. Sua conversação era espiritual, fina, mordaz, cheia de oportunidade, e jamais desmentiu o autor de Memórias do Diabo', de resto jamais se lisonjeou, e quando se lhe dirigiam algumas perguntas um pouco árduas de filosofia, ele confessava francamente sua insuficiência para resolvê-las, dizendo que era ainda muito ligado à matéria, e que ele preferia o alegre ao sério.
O médium que lhe servia de intérprete era a senhorita Caroline B..., uma das filhas do senhor da casa, médium do género exclusivamente passivo, não tendo jamais a menor consciência daquilo que escrevia, e podendo rir e conversar à direita ou à esquerda, o que fazia de bom grado, enquanto a sua mão caminhava. O meio mecânico empregado foi, durante muito tempo, a cesta pião, descrita em nossa instrução prática. Mais tarde, o médium serviu-se da psicografia directa.
Perguntar-se-á, sem dúvida, que provas tínhamos que o Espírito que se comunicava era o de Frédéric Soulié, antes que qualquer outro. Não é aqui o caso de tratar a questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que o de Soulié se revelou por mil circunstâncias de detalhes que não podem escapar a uma observação atenta; só uma palavra, um chiste, um facto pessoal narrado, vieram nos confirmar que era bem ele; várias vezes deu sua assinatura que foi confrontada com originais. Um dia pediram que desse seu retrato, e o médium, que não sabe desenhar, que nem jamais o viu, traçou um esboço de uma semelhança marcante.
Ninguém, da reunião, tivera relações com ele em sua vida; por que, pois, viera sem ser chamado? Foi porque se ligou a um dos assistentes, sem jamais consentir em dizer o motivo;
ele vinha quando essa pessoa estava presente; entrava com ela e saía com ela; de sorte que, quando ali não estava, ele não mais vinha, e, coisa estranha, era que quando ele lá estava, era muito difícil, senão impossível, haver comunicações com outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo que, por polidez, devia fazer as honras da casa.

Um dia, anunciou que nos daria um romance de sua autoria, e, com efeito, algum tempo depois, começou um relato cujo início muito prometia; o assunto era druídico e a cena se passava na Armorique ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se assustou com a tarefa que empreendeu, porque, é preciso dizê-lo bem, um trabalho assíduo não era seu forte, e ele confessava que se comprazia, com o maior bom grado, na preguiça. Depois de algumas páginas ditadas, aí deixou seu romance, mas anunciou que nos escreveria um outro, que lhe desse menos trabalho: foi então que escreveu o conto do qual começamos a publicação. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem.
Não a damos como obra de uma alta importância filosófica, mas como uma curiosa amostra de um trabalho de longo fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário,
é que esse relato repetiu-se cinco ou seis vezes diferentes, e frequentemente depois de interrupções de duas a três semanas; ora, a cada recomeço, o relato se seguia como se fora escrito de um golpe, sem riscos, sem retorno e sem que houvesse necessidade de lembrar o que havia precedido. Damo-lo tal como saiu do lápis do médium, sem mudar nada, nem no estilo, nem nas ideias, nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras, e alguns pequenos pecados de ortografia tendo sido assinalados, Soulié nos encarregou pessoalmente de rectificá-los, dizendo que nos assistiria nisso; quando tudo terminou, ele quis rever o conjunto, ao qual não fez senão algumas rectificações sem importância, e dar autorização de publicar como se o entendesse, fazendo, disse ele, de bom grado a renuncia de seus direitos de autor. Todavia, consideramos não dever inseri-lo em nossa Revista sem o consentimento formal de seu amigo póstumo, a quem pertencia o direito, uma vez que em sua presença e por sua solicitação éramos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito de Frédéric Soulié. A.K.

UMA NOITE ESQUECIDA

Havia, em Bagdá, uma mulher do tempo de Aladim; é a sua história que vou contar Num dos subúrbios de Bagdá morava, não longe do palácio da sultana Shéhérazad, uma velha mulher chamada Manouza. Essa velha era motivo de terror para toda a cidade, porque
era feiticeira das mais apavorantes. Em sua casa, à noite, se passavam coisas tão assustadoras que, logo que o sol se deitava, ninguém se arriscava passar diante de sua morada, a menos que fosse uma amante à procura de um filtro para uma senhora rebelde,
ou uma mulher abandonada em busca de um bálsamo para colocar sobre a ferida que seu amante lhe fizera, abandonando-a.
Um dia, pois, em que o sultão estava mais triste que de hábito, e que a cidade estava numa grande desolação, porque ele queria que perecesse a sultana favorita, e que a seu exemplo todos os maridos eram infiéis, um jovem deixou uma magnífica habitação situada ao lado do palácio da sultana. Esse jovem trajava uma túnica e um turbante de cor sombria; mas sob essas simples vestes havia um grande ar de distinção. Procurava se esconder ao longo das casas, como gatuno, ou amante temeroso de ser surpreendido. Dirigia seus passos para o lado de Manouza, a feiticeira. Uma viva ansiedade pintava sobre os seus traços, que mostravam a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas, as praças com rapidez, e, todavia, com grande precaução. Chegado perto da porta, hesitou alguns minutos, depois decidiu bater. Durante um quarto de hora, teve angústias mortais, porque ouvia ruídos que nenhum ouvido humano havia escutado; uma matilha de cães uivando com ferocidade, gritos lamentáveis, cantos de homens e de mulheres, como ao fim de uma orgia, e, para clarear todo esse tumulto, luzes correndo de alto a baixo da casa, fogos fátuos de todas as cores; depois, como por encantamento, tudo cessou: as luzes se extinguiram e a porta se abriu.
O visitante ficou um instante interdito, não sabendo se devia entrar no corredor sombrio, que se oferecia à visão. Enfim, armando-se de coragem, penetrou audaciosamente. Depois de caminhar, às apalpadelas, o espaço de uns trinta passos, encontrou-se em face de uma porta dando para uma sala, clareada somente por uma lâmpada de cobre de três bicos, suspensa no meio do tecto.
A casa que, depois do ruído que ouvira da rua, parecia dever ser muito habitada, tinha agora o ar deserto; essa sala que era imensa, e devia, pela sua construção, ser a base do edifício, estava vazia, exceptuando-se os animais empalhados, de todas as espécies, com os quais estava guarnecida.
No meio dessa sala, havia uma pequena mesa coberta de livros de mágicos, e, diante dessa mesa, numa grande poltrona, estava sentada uma pequena velha, alta apenas dois côvados, e de tal modo embrulhada de xailes e de turbantes, que era impossível ver seus traços. À aproximação do estranho, ela levantou a cabeça e mostrou, aos seus olhos, o mais terrível rosto que ele podia imaginar.
Eis-te aqui, senhor Noureddin, disse ela, fixando seus olhos de hiena sobre o jovem que entrara; aproxime-se! Faz vários dias que meu crocodilo, de olhos de rubis, me anuncia tua visita. Diz se é um filtro o de que precisas; diz se é uma fortuna. "Mas, que digo eu, uma fortuna! Não a tens que faz inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico como és o mais belo?
É provavelmente um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que ousa ser-te cruel?
Enfim, não devo nada dizer, eu não sei nada, estou pronta para escutar tuas dificuldades e para dar-lhes os remédios necessários, se, todavia, minha ciência tiver o poder de ser útil a ti. Mas que fazes, pois, a me olhar assim sem avançares? Terias medo? Talvez eu te apavore?
Tal como me vês, antigamente era bela; mais bela que todas as mulheres hoje existentes em Bagdá; foram os desgostos que me tornaram tão feia. Mas que te causam meus sofrimentos?
Aproxima-te; eu te escuto; somente não posso dar-te senão dez minutos, assim, despacha-te. Noureddin não estava muito tranquilo; entretanto, não queria mostrar aos olhos de uma velha mulher a perturbação que o agitava, avançou e lhe disse: Mulher, vim por uma coisa grave; de tua resposta depende a sorte de minha vida; vais decidir de minha felicidade ou de minha morte. Eis do que se trata O sultão quer matar Nazara; eu a amo; vou contar-te de onde vem esse amor, e venho pedir-te um remédio, não a minha dor, mas a sua infeliz posição, porque eu não quero que ela morra. Sabes que meu palácio é vizinho daquele do sultão; nossos jardins se tocam. Há mais ou menos seis luas que, uma tarde, passeando nesses jardins, ouvi uma encantadora música acompanhada da mais deliciosa voz de mulher que jamais ouvi. Querendo saber de onde isso provinha, aproximei-me dos jardins vizinhos, e reconheci que era de um quarto de verdura habitado pela sultana favorita. Fiquei vários dias absorvido por esses sons melodiosos; noite e dia, revia a bela desconhecida cuja voz me seduzia; porque é preciso dizer-te que, em meu pensamento, ela não podia ser senão bela. Passeava, cada tarde, nas mesmas alamedas onde ouvira essa encantadora harmonia; durante cinco dias, isso foi em vão; enfim, no sexto dia a música se fez ouvir de novo; então, não podendo mais conter-me, aproximei-me do muro e vi que era preciso pouco esforço para escalá-lo.
Depois de alguns momentos de hesitação, tomei uma grande decisão: passei do meu para o jardim vizinho; ali, vi, não uma mulher mas uma huri, a huri favorita de Maomé, uma maravilha enfim! À minha visão, ela assustou-se um pouco, mas, lançando-me aos seus pés, pedi-lhe que não tivesse nenhum temor em ouvir-me; disse-lhe que seu canto me atraíra e assegurei-lhe que não encontraria em minhas acções senão o mais profundo respeito; ela teve a bondade de me ouvir.
A primeira noite se passou falando de música. Também cantei, e me ofereci para em acompanhá-la; ela nisso consentiu, e marcamos encontro para o dia seguinte, à mesma hora Nessa hora, ela estava mais tranquila; o sultão estava com seu conselho e a vigilância menor. As duas ou três primeiras noites se passaram inteiramente com a música; mas a música é a voz dos amantes, e desde o quarto dia não estávamos mais estranhos um ao outro. Nós nos amamos. Que bela estava! Como sua alma era bela também! Fizemos, muitas vezes, o projecto de fugirmos. Ai! por que não o executamos? Seria menos infeliz, e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria no momento de ser colhida pela foice que vai arrebatá-la à luz.

(continua no próximo número)
Revista Espírita, Novembro de 1858

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