domingo, 22 de julho de 2007

Quadro de inferno pagão



Quadro do Inferno Pagão


9 — Só conhecemos o inferno pagão através das composições dos poetas. Homero e Virgílio nos deram a definição mais completa, mas devemos considerar as exigências formais da poesia nessas descrições. A de Fenelon no Telêmaco, embora originária da mesma fonte quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa. Descreve o aspecto lúgubre dos vários lugares e procura ressaltar sobretudo o género dos sofrimentos a que são submetidos os culpados, estendendo-se bastante sobre o destino dos maus reis, isso em virtude da instrução que dava ao seu aluno real.
Por mais popular que seja a sua obra, muitas pessoas não terão de memória essa descrição ou não puderam reflectir bastante sobre ela para fazer uma comparação. Eis porque julgamos útil reproduzir os trechos que apresentam relação mais directa com o nosso assunto, ou seja, aqueles que se referem especialmente às penas individuais.


10 — Entrando, Telêmaco ouve outros gemidos de uma sombra que não encontrava consolação. — Qual é, diz ele, — a vossa desgraça? O que fostes na Terra? — Eu era, — respondeu-lhe a sombra, — Nabofarzan, rei da soberba Babilónia, e todos os povos do Oriente tremiam ao simples som do meu nome. Fiz-me adorar pelos babilónios no templo de mármore onde estava representado por uma estátua de ouro, diante da qual eram queimados dia e noite os mais preciosos perfumes da Etiópia. Ninguém jamais ousou me contradizer sem ter sido imediatamente punido. Eu inventava cada dia novos prazeres para tornar minha vida mais deliciosa. Era então jovem e robusto. Mas, oh, desgraça, embora muito ainda me restasse para gozar sobre o trono, uma mulher que amei e que não me amava me fez logo sentir que eu não era um deus: envenenou-me e hoje nada mais sou. Puseram pomposamente as minhas cinzas numa urna de ouro. Choraram, arrancando os cabelos ao redor. Ela ameaçou atirar-se nas chamas em que me incineravam, para morrer comigo e ainda hoje vai chorar aos pés do soberbo túmulo a que lançaram as minhas cinzas. Mas ninguém me lamenta e minha memória causa horror mesmo na minha família, enquanto sofro aqui em baixo horríveis tratamentos.
Telêmaco, emocionado com o drama, lhe diz: Foste verdadeiramente feliz durante o vosso reinado, sentíeis essa doce paz sem a qual o coração permanece sempre opresso e abatido em meio das delícias? — Não — respondeu o babilónio — nem mesmo compreendo o que quereis dizer. Os sábios louvam essa paz como o único bem, mas de minha parte jamais a senti. Meu coração estava incessantemente agitado por novos desejos, por temores e esperanças. Eu procurava esquecer-me de mim na confusão das minhas paixões. Cuidava de entreter essa embriaguez para que não cessasse, pois o menor intervalo de raciocínio normal me teria sido demasiado amargo. Eis a paz que desfrutei. Qualquer outra me parece uma fábula ou um sonho. Eis os bens que lamento.


Assim falando, o babilónio chorava como um homem pusilânime que se deixou debilitar pelas comodidades, não se tendo jamais acostumado a suportar a desgraça. Tinha ao seu lado alguns escravos que fizeram morrer nas honras dos seus funerais. Mercúrio os havia entregue a Caronte com o seu rei, dando-lhes um poder absoluto sobre esse rei que haviam servido na Terra.
Essas sombras de escravos não temiam mais a sombra de Nabofarzan, mas a mantinham acorrentada e a submetiam às mais cruéis humilhações. Uma lhe dizia: — Nós também não éramos homens, tanto como tu?
Como pudeste ser tão insensato para te considerar como um deus, não te lembrando que pertencias à mesma raça dos homens? — Uma outra o insultava dizendo: — Tinhas razão de não querer que te considerassem como um homem, porque eras um monstro sem humanidade. — Outra lhe falava assim: — Muito bem! Onde estão agora os teus aduladores? Não tens mais nada a dar, infeliz! E não podes mais fazer nenhum mal; eis que te tornaste escravo dos teus próprios escravos; os deuses demoram a fazer justiça, mas por fim a fazem.


A essas duras palavras Nabofarzan se atirava com o rosto na terra, arrancando os cabelos numa explosão de raiva e desespero. Mas Caronte dizia aos escravos: — Puxai-o pela corrente, erguei-o mesmo que ele não queira, pois ele não terá nem mesmo a consolação de ocultar a própria vergonha. É necessário que todas as sombras do Estinge o testemunhem para justificar os deuses, que tão longamente suportaram o reinado desse ímpio na Terra.
Logo ele percebeu, bem próximo dele, o Tártaro negro. Subia deste uma fumaça escura e espessa, cujo odor empestado causaria a morte se ela se expandisse pela região dos vivos. Essa fumaça cobria um rio de fogo com turbilhões de chamas, e o seu ruído, semelhante ao das mais impetuosas correntes, quando se lançam dos mais altos rochedos ao fundo dos abismos, fazia que não se pudesse ouvir com clareza nesses tristes lugares.
Telêmaco, secretamente influenciado por Minerva, entrou sem temor nesse báratro. Percebeu de início um grande número de homens que haviam vivido nas mais baixas condições e que eram punidos por haverem buscado as riquezas por meio de fraudes, de traições e de crueldades. Notou ali muitos ímpios e hipócritas que fingindo amar a religião, dela se haviam servido como um bom pretexto para satisfazer as suas ambições, aproveitando-se da credulidade alheia. Esses homens que haviam abusado da própria virtude, embora sendo ela o mais valioso dom dos deuses, eram punidos como os piores entre os celerados.


Os filhos que haviam matado pais e mães, as esposas que haviam manchado suas mãos no sangue dos próprios maridos, os traidores que haviam entregue a pátria violando todos os juramentos sofriam penas menos cruéis do que esses hipócritas. Os três juízes dos infernos assim determinaram, e eis as suas razões: esses hipócritas, não se contentando de ser maus como os demais ímpios, querem ainda passar por bons e fazem por sua falsa virtude que os homens não mais queiram acreditar na virtude verdadeira. Os deuses, dos quais eles se serviram, tornando-os desprezíveis para os homens, sentem prazer ao empregar todo o seu poder para vingar-se dos seus insultos.
Ao lado desses estavam outros homens que o vulgo não considera culpados, mas que a vingança divina persegue impiedosamente. São os ingratos, os mentirosos, os vaidosos que se louvaram no vício, os críticos maliciosos que não temeram manchar a mais pura virtude. Por fim, os que julgaram temerariamente sem conhecer as coisas a fundo, com isso prejudicando a reputação dos inocentes.


Vendo os três juízes que estavam sentados e condenavam um homem, Telêmaco ousou perguntar-lhes quais eram os crimes do mesmo. No mesmo instante o condenado, tomando a palavra, exclamou: — Nunca fiz nenhum mal, sempre tive o maior prazer em fazer o bem, fui magnânimo, liberal, justo e compassivo. Do que me podem acusar? — Então Minos lhe disse: Não se te reprova nada em relação aos homens, mas não devias menos aos homens do que aos deuses? Qual, é, pois, essa justiça de que te vanglorias? Não faltaste com nenhum dever no tocante aos homens, que nada são. Foste virtuoso, mas referiste toda a tua virtude a ti mesmo e não aos deuses, que a concederam a ti, porque querias gozar os frutos da tua própria virtude, vangloriando-te em ti mesmo: foste a tua própria divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram unicamente por si mesmos não podem renunciar aos seus direitos. Tu os esquecestes, eles te esqueceram. Eles te entregaram a ti mesmo, desde que preferiste ser de ti mesmo e não deles. Procura, pois, agora, se puderes, o teu consolo em teu próprio coração. Estás agora, para sempre, separado dos homens aos quais querias agradar. Estás sós diante de ti, que eras o teu ídolo. Compreende que não existe verdadeira virtude sem o respeito e o amor aos deuses, aos quais tudo deves. Tua falsa virtude, que por muito tempo ofuscou os homens fáceis de enganar, vai ser confundida. Os homens, considerando os vícios e as virtudes somente pelo que os toca ou os agrada, são cegos para o verdadeiro bem e o verdadeiro mal. Mas aqui uma luz divina inverte todos os julgamentos superficiais. Frequentemente é condenado aquilo que eles admiram e justificavam o que eles condenam.


A essas palavras, o filósofo, como ferido por um raio não podia conter-se. A satisfação que havia tido outrora ao apreciar a sua própria moderação, a sua coragem e as suas tendências generosas transformou-se em desespero. A visão do seu próprio coração, inimigo dos deuses, tornou-se um suplício. Ele se via a si mesmo e não podia deixar de fazê-lo. Via a vaidade das apreciações dos homens, aos quais ele quis sempre agradar em todas as suas acções. Havia uma revolução geral em tudo o que se encontrava no seu íntimo, como se alguém revirasse todas as suas entranhas. Ele não era mais o mesmo. Seu coração negava-lhe todo o apoio. Sua consciência, cujo julgamento lhe havia sido tão favorável, voltou-se contra ele reprovando amargamente o desvirtuamento e o engano de todas as suas virtudes, que não tiveram o culto da divindade por princípio e por fim. Estava perturbado, consternado, cheio de vergonha, de remorsos e de desespero. As fúrias não o atormentavam porque era bastante entregá-lo a si mesmo, pois o seu próprio coração vingava suficientemente os deuses desprezados. Procurou os lugares mais sombrios para se ocultar dos outros mortos, já que não podia ocultar-se a si mesmo. Procurou as trevas e não pode encontrá-las, pois uma luz importuna o seguia por toda parte, os raios penetrantes da verdade vingam sem cessar a verdade que ele negligenciou ao invés de seguir.
Tudo o que ele amava se tornava odioso, como sendo a própria fonte de seus males, que não mais poderiam acabar. Disse a si mesmo: Oh insensato! Então não conheci os deuses, nem os homens e nem a mim mesmo! Não, nada conheci, desde que nunca amei a única verdade e o verdadeiro bem. Todos os meus passos foram extraviados. Minha sabedoria não era mais que loucura. Minha virtude, um orgulho ímpio e cego. Fui o meu próprio ídolo.
Por fim Telêmaco viu os reis condenados por terem abusado do poder. De um lado uma Fúria vingadora lhes mostrava um espelho em que viam a monstruosidade dos seus próprios vícios. Viam e não podiam deixar de ver sua grosseira vaidade e sua avidez dos mais ridículos louvores; sua dureza para com os homens, que tinham o dever de fazer felizes; sua insensibilidade para a virtude; seu temor de ouvir a verdade; sua inclinação para as criaturas pusilânimes e bajuladoras; sua irresponsabilidade; sua indolência; sua desconfiança excessiva; seu fausto e demasiada magnificência baseadas nas ruínas dos povos; sua ambição que os levava a conquistar o mínimo de vanglória com o sangue dos cidadãos; enfim, sua crueldade de procurar cada dia novas emoções por entre as lágrimas e o desespero de tantos infelizes. Eles se viam nesse espelho permanentemente. Viam-se mais horríveis e mais monstruosos do que a Quimera vencida por Belerofonte ou a Hidra de Lerna abatida por Hércules, ou mesmo Cérbero vomitando por suas três güelas escancaradas um sangue negro e venenoso capaz de empestar toda a raça dos mortais que vivem na Terra.


De outro lado e ao mesmo tempo outra Fúria lhes repetia de maneira insultuosa todos os louvores que os aduladores lhes fizeram em vida e mostravam-lhes outro espelho, no qual eles se viam tais como os aduladores os haviam pintado. A contradição desses dois quadros tão opostos constituía um suplício para a sua vaidade. Notava-se que os piores entre esses reis eram os que haviam recebido as homenagens mais magnificentes durante a vida, porque os maus são mais temidos que os bons e exigem sem pudor as mentirosas reverências dos poetas e dos oradores do seu tempo.
Ouviam-se os seus gemidos na profundeza das trevas, onde eles não podiam perceber outra coisa além dos insultos e das ironias que deviam sofrer. Nada tinham ao seu redor que não os repelisse e contradissesse confundindo-os, enquanto na terra se aproveitavam da vida dos homens, supondo que todos existiam somente para os servir. No Tártaro eles são entregues aos caprichos de alguns escravos que os submetem por sua vez a uma servidão cruel. Têm de servir sofrendo e não lhes resta nenhuma esperança de poder abrandar jamais o seu cativeiro. Ficam sujeitos aos golpes desses escravos, transformados em seus tiranos impiedosos, como uma forja sobre os golpes dos martelos dos Ciclopes, quando Vulcano os apresa no trabalho dentro das ardentes fornalhas do monte Etna.


Telêmaco viu então semblantes, pálidos, consternados e hediondos. É que uma tristeza negra corrói esses criminosos. Eles têm horror de si mesmos e não podem livrar-se desse horror como se ele pertencesse à sua própria natureza. Não necessitam assim, de outro castigo para as suas faltas do que as suas próprias faltas que vêem sem cessar em toda a sua enormidade, apresentando-se a eles como horríveis espectros que os perseguem. Para se livrarem disso buscam uma outra morte mais poderosa que aquela que os separou dos seus corpos.
No desespero em que se encontram, esses reis clamam pelo socorro de uma morte que pudesse extinguir neles todo o sentimento e toda a consciência. Pedem aos abismos que os traguem para escaparem aos raios vingadores da verdade que os perseguem, mas estão condenados à vingança que se distila sobre eles gota a gota e que jamais cessará. A verdade que eles temiam ver é agora o seu suplício. Eles a vêem e só têm olhos para vê-Ia erguendo-se contra eles. Essa visão os trespassa, os destrói, os arranca de si mesmos. É como um raio que sem nada destruir ao redor penetra até o mais fundo das suas entranhas.
Entre essas coisas que lhe faziam eriçar os cabelos, Telêmaco viu muitos antigos reis da Lídia que eram punidos por terem preferido os deleites de uma vida folgazã ao trabalho para melhoria dos povos, que deve ser inseparável da realeza.
Os reis reprovavam uns aos outros a sua própria cegueira. Um dizia a outro que tinha sido seu filho: — Não te recomendei frequentemente, durante a minha velhice e antes de morrer, que reparasses os males que pratiquei na minha negligência? — Ah, infeliz pai! — dizia o filho, — foste tu que me perdeste. Foi o vosso exemplo que me sugeriu o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a dureza de coração para com os homens! Vendo-te reinar com tanta displicência e cercado de covardes aduladores, habituei-me ao gosto da lisonja e dos prazeres. Acreditei que o resto dos homens eram para os reis o que são os cavalos e outros animais de carga para a humanidade em geral, ou seja, esses animais aos quais não se dá importância, querendo apenas que prestem serviços e proporcionem comodidades. Acreditei nisso, e foste tu que me fizeste acreditar. Hoje estou sofrendo todos estes males por te haver imitado. — A essas recriminações juntavam as mais horríveis maldições e pareciam prestes a se entre - devorarem de raiva.


Ao redor dos reis volteavam ainda, como morcegos nocturnos, as mais cruéis suspeitas, os falsos receios, as desconfianças que são as vinganças dos povos contra a maldade de seus reis, sua insaciável fome de riquezas, a falsidade de sua glória sempre baseada na tirania e a covarde displicência que aumenta os males do povo sem lhes proporcionar jamais a compensação das necessidades satisfeitas.
Viam-se muitos desses reis severamente punidos, não pelos males que haviam praticado, mas por terem negligenciado o bem que deviam fazer. Todos os crimes dos povos, que decorrem da negligência na observação das leis, eram imputados aos reis que deviam ter como seu ministério fazer que as leis reinassem. Todas as desordens provenientes dos excessos de fausto, do luxo e de todos os demais abusos que lançam os homens na violência e na tentação de desprezar as leis para se enriquecerem, eram também imputadas aos reis. Eram tratados sobretudo com rigor os que em lugar de serem bons e vigilantes pastores dos povos só haviam pensado em devorar o rebanho como lobos insaciáveis.
Mas o que mais consternava Telêmaco era ver, nesse abismo de trevas e maldades, grande número de reis que haviam passado pela Terra como soberanos muito bons e estavam condenados às penas do Tártaro por se terem deixado governar por homens maus e hipócritas. Esses eram punidos pelos males que haviam permitido que fossem feitos sob a sua autoridade. De resto, a maioria desses reis não haviam sido bons nem maus, tamanha era a sua fraqueza. Jamais haviam receado conhecer a verdade, pois não possuíam o gosto da virtude e nunca sentiram o prazer de praticar o bem


Referência: O céu e o inferno

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